“(…) soubessem vocês que amor e fome é a mesma coisa".
Há sujeitos que passam a vida se alimentando de migalhas, colecionando-as como se fossem banquetes. Aprenderam cedo, cedo demais, a mastigar e saborear a violência com dentes ainda de leite. Não qualquer violência, mas aquela que chega disfarçada de cuidado, que se infiltra nos interstícios da linguagem antes mesmo de haver palavra para nomeá-la. Uma violência que não grita, mas sussurra e que não rasga a pele de imediato, mas se acomoda no tecido das frases mal-ditas.
Sujeitos que aprenderam a confundir cuidado com controle, afeto com imposição, atenção com vigilância. O toque? Sempre atravessado pelo excesso, pela força, pela ferida que não cicatriza. O gesto? Nunca é simples ou despretensioso, carregando sempre uma ambiguidade cortante, uma mistura de promessa e ameaça, de acolhimento e recusa, como se cada movimento do Outro fosse um aviso velado de que o afeto, se vier, trará junto o preço da renúncia ou do medo.
E dentro desse mesmo circuito, esses sujeitos acabam por habituar-se a ocupar sempre o mesmo lugar à mesa onde o afeto vem invariavelmente temperado de ausência, e o cuidado, quando servido, chega em doses calculadas de ameaça. Lugar esse, onde o “amor” e a violência se misturam numa receita quase impossível de se separar. Cada gesto, um convite ambíguo de aproximação e repulsa, presença e corte, colo e exílio.
Ocupar esse lugar passa a ser uma espécie de destino (lê-se aqui, sentença). Quase um ritual, ou, para dizer em termos mais precisos, uma repetição (lê-se aqui, lacanianamente falando, uma modalidade de gozo, que se inscreve no corpo, como quem aprendeu a respirar o ar rarefeito do desamparo). Uma coreografia silenciosa, executada com a precisão de quem já conhece o cardápio de cor e salteado. Os gostos? Sempre os mesmos. Os aromas? Reconhecíveis de longe. Há um saber do corpo que se antecipa, antes mesmo da primeira garfada, o sujeito já sabe o gosto que virá. Porque é sempre o mesmo prato. É sempre a mesma fome.
Essa fome, é uma fome de nomeação, de lugar, de reconhecimento. E nessa confusão entre dor e cuidado, que o sujeito aprende a existir. Não se trata de meramente desejar a dor, não! O que lhe foi servido como “amor” sempre teve o gosto da violência. E, com o tempo, o paladar se acostuma. Entre bocadas e engasgos, o sujeito assimila que o lugar do afeto é também o lugar da ferida. Onde o toque vem carregado de violência e onde o cuidado, quando aparece, sempre traz o gosto amargo de uma dívida impagável.
Ainda assim… o sujeito come. Mastiga. Engole. Por uma fome maldita, que se confunde com o desejo de amor, de amparo, de um outro tipo de olhar que nunca se serve. Um apetite treinado a reconhecer sabores amargos como se fossem o único possível. Um paladar estruturado e viciado em reencontrar o mesmo tipo de oferta, o mesmo tipo de prato, o mesmo tipo de gozo.
São sujeitos cuja estrutura os conduz, insistentemente, ao mesmo cardápio. Não porque queiram, mas porque não “aprenderam”, ainda, a cuspir aquilo que nunca deveriam ter engolido. Há uma fidelidade silenciosa a esse menu de horrores, como se o corpo soubesse apenas repetir, em ato, a mesma cena que falta nome. Uma repetição que se inscreve, que se encena, que se repete… justamente pela impossibilidade de nomear e, por isso mesmo, na compulsão de repetir.
E nesse terreno, entre a fome e o vazio, que, quem sabe, para alguns, a análise pode emergir como a possibilidade de uma nova mesa. Não como promessa de salvação, nem como prato pronto a ser servido, mas como um espaço de travessia, de risco, de elaboração. Um lugar onde, não sem angústia, o sujeito pode começar a recortar, dar ritmo, nomear, separar, distinguir, pedaço por pedaço, aquilo que por anos engoliu. Entre o dizer e o silenciar, entre o cuspir e o engolir de novo, talvez se inaugure a chance de reconhecer um outro gosto do que até então se chamava amor.
Mas que fique claro: nem toda análise conduz ao banquete. Nem toda travessia chega à outra margem. A “saída”, quando existe, é sempre um movimento do sujeito. Não há Outro que salve. Não há analista que alimente. Há, no máximo, um espaço onde o sujeito possa, ele mesmo, começar a separar o que deseja manter e o que, enfim, decide não mais abocanhar, mastigar e engolir. Reconhecer, ainda que em silêncio, que por trás de tantos gestos de cuidado havia apenas o eco de uma violência primeira… já é, para alguns, uma pequena, radical e corajosa deserção da mesa onde o sintoma, por tanto tempo, se alimentou.
E então… você tem fome de quê?
“(…) soubessem vocês que amor e fome é a mesma coisa".
— Lacan, Seminário 03 As psicoses, pág. 66